[RESUMO] Comitê internacional entrega neste domingo (27) prêmio à historiadora Laura de Mello e Souza, a primeira mulher a ser agraciada pela organização sediada na Suíça. Pesquisadora voltada ao século 18 fala à Folha sobre a vocação para “historiadora de arquivo”, comenta a influência de Sérgio Buarque de Holanda e Fernando Novais e lembra seus pais, Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza.
Em 2001, a historiadora Laura de Mello e Souza escreveu na Folha uma análise sobre o livro “Olhos de Madeira”, uma reunião de ensaios do italiano Carlo Ginzburg, também historiador.
Um dos textos comentados por ela era “Distância e Perspectiva”, em que Ginzburg refletia sobre a constituição do nosso paradigma de história ao longo de mais de um milênio. Segundo Laura, “história se distingue de memória por pressupor uma reflexão sobre a distância que nos separa do passado, expressa por meio de um gênero literário chamado historiografia. História deriva da palavra grega pesquisa; memória, por sua vez, reporta-se a ritos e cerimônias numa chave eminentemente afetiva”.
Nesse e em outros sentidos, a autora de livros como “O Diabo e a Terra de Santa Cruz” é uma historiadora por excelência, como concluiu o Comitê Internacional de Ciências Históricas (ICHS, na sigla em inglês).
Fundado na Suíça poucos anos depois da Primeira Guerra Mundial, com o objetivo de promover o diálogo entre historiadores de diferentes países, o ICHS reúne hoje cerca de 55 associações nacionais.
Em 2015, o comitê lançou o Prêmio Internacional de História, que logo se consolidou como um dos mais prestigiados desse campo de estudos. O primeiro agraciado foi o francês Serge Gruzinski, da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris e, no ano seguinte, o prêmio foi concedido ao húngaro Gábor Klaniczay, da Universidade Centro-Europeia, de Budapeste. Depois de uma pausa de seis anos, o ICHS retomou a distinção, entregando-a ao indiano Sanjay Subrahmanyam, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Em janeiro deste ano, Laura foi anunciada como a quarta agraciada —não é apenas a primeira mulher a ser escolhida, mas a primeira pessoa das Américas. Ela recebe o prêmio neste domingo (27) em uma cerimônia em Tóquio.
No texto em que justificou a opção por ela, o grupo dedicado ao prêmio afirmou: “Os traços mais marcantes da trajetória intelectual e acadêmica de Laura de Mello e Souza, ao lado de sua qualidade excepcional, são sua originalidade e singularidade. Por mais de quatro décadas, ela se envolveu com diversas tendências e ondas da historiografia, tanto internacional e brasileira, mas nunca se deixou dominar por elas”.
Ao longo da carreira, a historiadora de 71 anos se dedicou sobretudo ao século 18 e demonstrou inclinação para os assuntos de Minas Gerais. Essas predileções convivem com um interesse dela por variados motes e “tendências”, como constata o ICHS. “Eu não costumo voltar aos mesmos temas, gosto de mudar. Há historiadores que são grandes especialistas, como João José Reis, um dos maiores historiadores da escravidão não apenas no Brasil, no mundo”, diz à reportagem.
Em “Desclassificados do Ouro” (1982), Laura retrata os homens livres que não conseguiram tirar proveito das atividades mineradoras e se tornaram ainda mais pobres. Eram chamados de “vadios” pelos donos do poder durante o ciclo do ouro.
“O Diabo e a Terra de Santa Cruz” (1986) tem um caráter inaugural e, por isso, firmou-se como sua obra mais lida e citada. Ela apresenta o primeiro estudo de fôlego feito no Brasil sobre a feitiçaria nos tempos da colônia.
No projeto 200 anos, 200 livros, em que intelectuais dos mais diversos perfis indicaram publicações indispensáveis para entender o Brasil, essa obra da autora foi uma das três recomendadas por Boris Fausto. “É um dos textos mais incisivos escritos por brasileiros que tomaram o caminho da história das mentalidades, explorando o imaginário português sobre o Brasil, com apoio em fontes diversas”, escreveu o historiador, que morreu no ano passado.
Em “Inferno Atlântico” (1993), ela mostra como as relações entre Brasil e Portugal transformaram as manifestações religiosas dos dois lados do oceano. “O Sol e a Sombra” (2006) também trata dos elos da colônia com a metrópole, mas sob novo ângulo, as instituições administrativas instaladas pelos portugueses no Atlântico Sul.
Laura retorna às Minas setecentistas em “O Jardim das Hespérides” (2022), que investiga uma profusão de visões do mundo natural naquela região. Nas primeiras páginas, conta que “o texto foi meticulosamente construído sobre uma quantidade considerável de fontes primárias”.
Para os pesquisadores, fontes primárias são, por exemplo, publicações originais e documentos oficiais, ou seja, aqueles que oferecem uma informação direta, sem nenhuma mediação anterior. Nesse sentido, Laura se considera uma “historiadora de arquivo”, empenhada nas pesquisas de manuscritos de três séculos atrás.
“Uma profissão de risco”, diz. “Ao trabalhar com períodos antigos, às vezes a gente encontra documentos mal higienizados. Uma amiga na França pegou um fungo, que gerou um problema nasal. Nunca peguei, mas tenho medo.”
Durante a entrevista, Laura se entusiasma ao falar sobre os manuscritos. Lembra inicialmente a emoção de tomar contato com épocas remotas e cita ainda uma vantagem bem particular de transcrever documentos antigos. “A caligrafia é, muitas vezes, difícil, o que exige uma transcrição. Quando transcrevo, as ideias vêm, o lugar onde tenho mais ideias é sempre dentro de um arquivo.”
É uma vida de pesquisa. Ela passou longos períodos observando páginas amareladas no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em São Paulo, e na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Em Lisboa, em instituições como a Torre do Tombo e o Arquivo Histórico Ultramarino. Em Paris, no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em Turim, no Arquivo Estatal.
Nessa geografia de centros de preservação histórica, espaços de Minas Gerais, como o Arquivo Público de Belo Horizonte e a Casa Borba Gato, em Sabará, foram especialmente úteis para a sua trajetória acadêmica. A biografia do poeta Cláudio Manuel da Costa, lançada em 2011, baseia-se em grande parte nos inventários e nas escrituras encontrados na Casa Setecentista, em Mariana.
Aliás, seu contato inicial com fontes manuscritas se deu nos arquivos mineiros na década de 1970, durante pesquisa para o mestrado que resultou no seu primeiro livro, “Desclassificados do Ouro”. Seu orientador era Fernando Novais.
Em 1973, quando Laura estava no segundo ano da graduação em história na USP, aconteceu um sorteio que indicaria os estudantes para participar de um grupo de seminários conduzido por Novais, professor do departamento havia mais de uma década. Ela foi uma das escolhidas e rapidamente passou a ter o autor de “Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial” como o seu principal mentor.
“Aqueles seminários mudaram a minha vida. Não era só história do Brasil, líamos também historiografia francesa, antropologia etc., o que me possibilitou pensar o objeto de estudo em uma chave muito mais alargada. Fernando é um homem extremamente generoso intelectualmente, com uma capacidade de reflexão teórica incomum”, diz sobre o professor emérito da USP de 91 anos. Além do mestrado, Novais a orientou no doutorado.
Na sala de aula, Novais é a maior referência para Laura. Nas leituras, Sérgio Buarque de Holanda.
Como era amigo dos pais dela, os professores e ensaístas Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, Buarque de Holanda chegou a conviver com Laura. Mas não foi a presença do historiador que mais a marcou, e sim os seus livros. “Como leitura, ele é o historiador brasileiro que mais me influenciou. Leio praticamente todos os anos e sempre descubro algo novo”, afirma.
Os livros de Buarque de Holanda que mais a desafiam são “Visão do Paraíso” e “Caminhos e Fronteiras”, não o mais famoso deles, “Raízes do Brasil”.
Nesse campo das referências, os pais, é claro, também ocupam papel preponderante. Laura se recorda das afinidades intelectuais com Antonio Candido, mas vinham de Gilda as observações mais minuciosas sobre os escritos da jovem historiadora. “Mostrava um texto para o meu pai e ele falava, por exemplo: ‘está muito bom, mas o final está confuso, você tem que refazer’. Minha mãe não, ela fazia várias sugestões de mudança, sugestões sempre muito úteis.”
Apoio à pesquisa
Para Laura, o Prêmio Internacional de História é também um reconhecimento da qualidade da produção acadêmica nesse campo hoje no Brasil. Além de exaltar o ensino e a pesquisa de história nas universidades públicas federais e estaduais, ela ressalta que algumas entidades particulares, como a PUC, têm feito um trabalho consistente nessa área.
A historiadora ainda enfatiza a relevância de entidades de fomento à pesquisa, como a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). “A minha carreira, que tem um perfil mais acadêmico, não teria existido se não fosse esse apoio público, especialmente da Fapesp.”
Depois de lecionar por 32 anos na USP e por quase uma década na Sorbonne, em Paris, Laura se mantém ligada aos programas de pós-graduação dessas duas universidades. Com uma carga mais leve de atividades docentes, sobra mais tempo para as pesquisas.
Agora ela está na reta final de um estudo sobre três cortes europeias que foram obrigadas a deixar suas capitais no período que vai de 1798 a 1807, em meio à expansão napoleônica. São elas Portugal, Sardenha e Nápoles. “É uma pesquisa com um número grande de fontes. Às vezes, na hora de redigir, é mais difícil quando temos muitas informações.”
Na análise sobre o livro “Olhos de Madeira”, mencionada no começo deste texto, Laura escreveu que “Ginzburg faz lembrar que o conhecimento é um processo difícil, penoso, semeado de imprevistos”. As quase cinco décadas de carreira dessa “historiadora de arquivo” também nos levam a essa conclusão.
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