No último dia 10, a ABA, equivalente à OAB nos EUA, publicou uma declaração acusando o presidente Donald Trump de “afrontas em larga escala ao rule of law”. Nela, exortam-se advogados e cidadãos a exigir que o governo siga a lei, e lista-se uma série de atos praticados por Trump que a violam, da restrição a direitos constitucionais de nacionalidade a tentativas de criminalizar diversidade e inclusão.
Como Luciana Reis defende nesta Folha, trata-se de uma verdadeira Blitzkrieg, ou guerra-relâmpago, que parece ter como inimigo o próprio direito.
Passamos por algo parecido no Brasil. Em 2022, foi lida no Largo São Francisco, em São Paulo, uma carta em defesa do “Estado democrático de direito”, subscrita por juristas notáveis. O ataque, naquela ocasião, dirigia-se sobretudo ao sistema eleitoral, que vinha sendo posto sob suspeitas infundadas no que parece ter sido uma tentativa de contestar o resultado das eleições.
Em comum entre os episódios, está a defesa do rule of law ou Estado de direito. Apesar de nuances que as distinguem, ambas as expressões comunicam uma ideia antiga, que aparece, por exemplo, em Platão e Aristóteles: a de que a vida em comum deve ser regida pela lei, e não pelos “homens” (ou pessoas).
Em outras palavras, não só as relações entre cidadãos mas também aquelas entre eles e governantes devem obedecer normas públicas, de que qualquer sujeito a elas submetido possa se valer para entender o que é devido por si perante os outros e vice-versa. No Estado de direito, nenhum indivíduo, nem mesmo um rei ou presidente, pode ditar o que os outros podem ou não podem fazer, a menos que aja imbuído de poder juridicamente concedido.
Que diferença isso faz? Leis podem ser injustas, afinal; governar por meio delas ao invés dos comandos de um déspota não impede que governantes as empreguem como instrumentos de iniquidade. Isso é verdade, mas há indícios de que ao menos alguns tipos de injustiça são difíceis de implementar por meio do direito.
De fato, opressões emblemáticas de nossa história, como as do nazismo na Alemanha, encontraram nos respectivos sistemas de justiça frequentes obstáculos, que concederam a sujeitos discriminados vitórias relevantes perante os sistemas que os oprimiam. Ernst Fraenkel, alemão judeu que atuou como advogado de pessoas perseguidas pelo nazismo até 1938, teoriza em seu livro “O Estado Dual” que a perseguição de judeus e outras minorias na Alemanha dependeu da criação de uma espécie de espaço extralegal, em que a SS nazista, e não os tribunais, detinha poder absoluto sobre os sujeitos perseguidos.
A justiça também os discriminava, mas nos limites bem mais estreitos da lei; os maiores horrores, como o holocausto, foram postos em prática à sua revelia, nesse âmbito em que valia o ditado do partido nazista, não o direito. A literatura jurídica nas últimas décadas vem explorando outros casos em que isso ocorreu, da África do Sul sob o apartheid à ocupação israelense na Cisjordânia.
O direito, claro, não é uma panaceia. Estados de direito permitem, e talvez até favoreçam, estruturas econômicas compatíveis com o estabelecimento de imensas desigualdades, por exemplo. Mas também é verdade que a lei parece ter a virtude de coibir certos tipos de autoritarismo e de discriminação. É isso que coloca o rule of law na mira de movimentos políticos como o trumpismo, que veem nele, creio que corretamente, um obstáculo à implementação de suas agendas mais reacionárias ou despóticas.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Arthur Cristóvão Prado foi “Isso não vai ficar assim”, de Itamar Assumpção.
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