
Antes de fazer uma viagem sem data de volta, Ana Catarina (Denise Fraga) decide reencontrar pessoas que lhe deram alguns livros ao longo da vida e escreveram dedicatórias neles. Com essa premissa, o filme “Livros Restantes” resgata e encerra histórias vividas pela personagem, que vai iniciar uma nova jornada de vida em outro país.
O filme, que tem estreia nacional prevista para 11 de dezembro e traz a literatura como um lugar de memória, também levanta o desejo de revisitar amigos e conversas, sejam elas confortáveis ou não.
Ao g1, Denise Fraga revelou com quem gostaria de ter um reencontro para uma dessas conversas, se fosse possível.
“Se eu tivesse que encontrar de novo alguém com que eu não falei, e que eu teria coragem de perguntar coisas hoje, seria meu pai. Depois que ele morreu, fiquei pensando muitas coisas sobre ele. Queria, hoje, ter uma conversa franca com ele, sabe? De entender coisas dele, mais do que eu tentei entender na época”, afirmou a atriz.
Denise Fraga em “Livros Restantes”
Divulgação
Ela ainda relembrou a cerimônia de homenagens que incentivou durante o velório de sua mãe, no início de 2025. Na ocasião, os presentes se reuniram para relembrar histórias com e sobre Wilma Fraga.
Com roteiro de Marcia Paraiso, “Livros Restantes” é uma coprodução Brasil–Portugal. No país europeu, Denise aproveitou para ser uma “outra Denise”, uma outra pessoa que ninguém reconhece — assim como propõe sua personagem logo no início da obra.
“Ninguém sabia exatamente onde eu estava. Tem uma um fascínio qualquer nesse seu ponto isolado transitando no mundo”, analisou a atriz.
Denise, que também está em cartaz com o filme “Sonhar com Leões”, ainda deu dicas de leituras e celebrou o atual cenário do cinema nacional:
“Fiquei feliz quando eu vi as pessoas torcendo por uma artista como se torce por jogador de futebol.”
Veja trechos da entrevista com Denise Fraga ao g1:
g1 – Logo no início do filme, sua personagem cita que está indo para um lugar onde ninguém a conhece, onde poderá ter uma identidade secreta. Você já teve essa vontade de ir para algum lugar onde ninguém te reconhecesse, ter uma vida nova, uma identidade secreta?
Denise Fraga – Eu acho que todo mundo tem um pouco essa vontade de pensar o que seria se não tivesse sido. Esses múltiplos ‘eus’ que a gente pode ser, eu acho que todo mundo tem. Eu já tive.
É que eu gosto muito da minha vida. Então eu fico mais assim… Mas de vez em quando, dá vontade de tentar entender o que é que seria você se não fosse você. Essas múltiplas possibilidades de Denise.
Eu acho que também eu tenho um caso de amor com a minha profissão muito grande, com o meu ofício. Encontrei na vida uma coisa que eu adoro fazer, consegui pagar minhas contas com isso. E isso é realmente uma receita de felicidade, porque eu adoro fazer o que eu faço quase que obcecadamente.
Então eu nunca quis não ser atriz ou ser diferente disso. Mas muitas vezes você fica pensando principalmente por ser atriz, nessas outras vidas que você poderia viver não só na profissão, como a gente já vive um pouco emprestado.
Eu fui para Portugal, fiz dois filmes lá, e tive uma espécie de outra Denise. Até quando o roteiro da Ana chegou para mim, eu falei: “Que maluco chegar nessa hora que eu tô aqui, nesse apartamento em Portugal, morando sozinha”. Ninguém sabia exatamente onde eu estava. Tem uma um fascínio qualquer nesse seu ponto isolado transitando no mundo.
Denise Fraga em “Livros Restantes”
Divulgação
g1 – O filme, além de falar sobre essa mudança na vida, mostra a importância de se falar as coisas, do desabafo. Você é como a atual Ana Catarina, que expõe os sentimentos? Ou você engole muito sapo?
Denise – Eu acho que a gente vai envelhecendo, e a gente vai ficando com mais coragem, né? Pelo menos comigo e umas amigas com quem eu divido coisas.
Eu era muito tímida, inacreditavelmente. Hoje, eu falar que eu era tímida parece um “tipo”, porque eu sou muito tagarela. Acho que a própria profissão me deu segurança de falar.
Sempre pensei muito, tive muita conversa interna. Mas eu era muito calada na infância, adolescência, até no início da carreira. Eu me lembro que uma vez um ator do Grupo Tapa me perguntou assim: “Você é calada mesmo ou você tá pensando um monte de coisa que você não fala?”.
A maioria dos calados está pensando em muita coisa que não fala. A gente não para de pensar. Hoje eu sou uma tagarela. Mas eu acho que eu aprendi a falar com afeto sobre coisas que eu não falava.
Eu faço terapia e fiz muitas horas da minha vida. Eu acho que fazer terapia devia ser um direito de todos. Então eu acho que eu aprendi, sim, a falar com mais afeto, ser mais assertiva.
A Ana Catarina está fazendo meio que um inventário de si. Ela resolve fazer esses encontros, e até algumas pessoas rejeitam essa conversa. As pessoas não querem conversar. É muito louco. As pessoas tão topando uma cegueira, até com medo de tocar em assuntos.
Eu gosto muito de fazer sessão comentada, no teatro a gente faz com regularidade. Você se irmana ali com a plateia nos pontos de conexão que aquela obra pode ter te trazido. E eu acho que o teatro, o cinema, a literatura, são muito terapêuticos. Eu acredito na evolução humana através da arte.
g1 – No filme, sua personagem revisita pessoas que fizeram parte da história dela. Você, Denise, gostaria de revisitar alguém? Voltar a falar com alguém que você não vê mais ou até que já partiu, para que pudesse conversar e entender algo que ficou lá atrás?
Denise – Ai, a gente falando de terapia, e ela vai arrumar o divã agora, né? (risos) Mas que boa pergunta.
A Márcia Paraíso é muito incrível. Olha o roteiro que ela escreveu. Olha que premissa maravilhosa. E aí eu fiquei pensando, por que que a gente não faz isso?
A gente deixa isso para aquela hora que todo mundo se encontra no velório de alguém e todo mundo fica falando daquela pessoa. E vira aquele mosaico coletivo.
Inclusive, eu acho que é uma coisa que a gente devia aprender a cerimonializar nos velórios. Eu fiz isso no enterro da minha mãe. E eu me lembro que até meu irmão olhou para mim assim: “Você vai mesmo fazer isso?”. Mas ele mesmo começou a falar. Depois, a minha prima falou, eu falei dela. Acho que a gente cerimonializa pouco a vida, a gente faz pouco rituais criativos da própria vida. E deixa isso pro velório, quando acontece, ou um discurso de aniversário.
Eu acho que se eu tivesse que encontrar de novo alguém que eu não falei, que eu teria coragem de perguntar coisas hoje, seria meu pai.
Porque, depois que meu pai se separou da minha mãe, entendi muito mais dele. E depois que ele morreu, eu fiquei pensando muitas coisas sobre ele. E também terapia e tudo mais… Mas eu queria hoje ter uma conversa franca com ele, sabe? De entender coisas dele, mais do que eu tentei entender na época.
g1 – Depois de ver o filme, estava lendo o release e, lá, cita que o “Livros Restantes” mostra uma mulher de 50 anos que deixa de ser vista pela sociedade. Em algum momento da sua vida, você sentiu isso? Seja na falta de oportunidade profissional, seja nos olhares, nas ruas e até de respeito?
Denise – Eu nunca senti isso. Assim, na verdade, eu não me sinto velha. Isso é um perigo até…
Eu não me sinto velha, é muito louco, porque eu tenho 61 anos e eu tenho uma juventude comigo.
Denise Fraga em “Livros Restantes”
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Eu vejo que eu tô velha quando eu vejo que meu filho tá meio gordo, fumando. Agora graças a Deus não fuma mais, mas quando você tem um filho que engordou e fuma, você fala assim: “Eu tô velha”.
Mas eu acho que eu senti talvez isso na maternidade. Hoje é uma geração muito diferente nessa coisa de escutar o pai como sábio.
Uma hora, tudo o que a gente fala, nossos filhos começam a questionar muito. É natural. Eu também fazia isso com a minha mãe, mas talvez eu não deixasse a minha mãe perceber tanto que a opinião dela não me interessava mais.
Mas isso é uma coisa recorrente que as pessoas falam. Eu acho até que isso tá mudando muito. Inclusive, uma coisa que a gente tem o costume de fala é: “Ah, é raro, é ter um protagonista 50 mais”. É.
Quando você vai ficando mais velha, você vai fazer a mãe, você vai fazer depois a avó. Você não é mais o herói da história, o personagem protagonista. E alguma coisa aconteceu, que, esse ano, é o segundo filme que eu lanço em que sou protagonista. E estou com convite para o ano que vem de três filmes para ser protagonista.
As pessoas me perguntam se isso é uma coisa dos diretores querendo afirmar o protagonismo feminino. É também. Mas eu acho que as mulheres estão mais protagonistas da vida, das suas vidas, e isso acaba no cinema.
Hoje uma mulher de 60, ela tá aí cuidando da vida, até mudando, recomeçando a vida, morando sozinha, saindo, indo para balada.
g1 – A gente está acompanhando as conquistas de “Ainda estou aqui”, de “Agente Secreto”… Como que você está vendo esse cenário atual de filmes nacionais?
Denise – É, muito bonito, né? Eu fiquei tão feliz esse ano quando eu vi as pessoas torcendo por uma artista, a Nanda, Fernanda Torres, e pelo Waltinho, Walter Sales, como se torce por jogador de futebol. Que coisa maravilhosa.
E eu sinto que tem um duplo valor no que aconteceu com “Ainda Estou Aqui”, porque não era um filme qualquer. Era um filme que conta a história que o Brasil não contou para si mesmo e que nos foi sequestrada. Tiraram de nós essa possibilidade na escola, e a gente teve que saber por nós mesmos o que é que tinha acontecido na ditadura militar no Brasil.
O cinema é o maior veículo de uma nação. Os Estados Unidos perceberam isso muito cedo e fizeram do seu cinema a sua arma de poder no mundo.
Todo mundo está de olho no Brasil agora. O Brasil está para o mundo. Eu acho muito impressionante o talento que a gente tem para o cinema. Em como é uma potência, que todas as vezes que tentaram abafar e aplacar, assim que ele é de novo incentivado — e ele precisa ser incentivado –, ele floresce.
E por que que precisa ser incentivado? Eu falo para todo mundo para ver “Livros Restantes” na primeira semana, porque a gente não tem dinheiro pro lançamento, como [os filmes americanos] têm.
O blockbuster entra nas salas, e a gente vai ficando com a sobra. Temos a cota de tela agora que foi conseguida a duras penas.
Mas eu clamo para as pessoas: coloque a cota de tela de cinema nacional em você. Veja Quantos filmes nacionais você viu no mês. Se você gosta de ao cinema. Prioriza um.
Denise Fraga em “Livros Restantes”
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g1 – Aproveitando o tema do filme, o que você está lendo atualmente?
Denise Fraga – Eu tô lendo a Annie Ernaux, porque a Annie Ernaux é um vício. Eu tô até com raiva dela. (risos) Porque ela escreve aquela escrita seca, né? Eu tô lendo um livro muito bonito dela, que é “O uso da foto”. É um livro em que ela teve um caso amoroso. Eles fotografavam as roupas pelo chão e combinaram depois de escrever, cada um, o que foi para eles aquela noite. É muito bonito.
Eu fico atualmente entre leituras que eu chamo de funcionais, que são leituras que ajudam a gente a viver nesse mundo caótico.
A gente ler Sidarta Ribeiro, Krenak, “A queda do céu”, do Kopenawa, a gente precisa urgentemente tentar entender por outra ótica, para a gente conseguir viver nesse caos e quase barbárie que o mundo anda.
E eu acho que você também tem que alternar e ler poesia. Ter o código poético em dia. Então, a Wisława Szymborska é uma poetisa que eu tô muito ligada ultimamente. Sempre Drummond me ensina. Tem que ler Valter Hugo Mãe, Mia Couto, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro.
Põe lá meia horinha antes de dormir, se obrigue a ler quatro páginas que seja, antes de cair no sono, sai do celular.
Separa 15 minutos por dia, que seja, para você conseguir se nutrir e ter palavras para as suas angústias, porque senão você fica muito sozinho.
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